25 de setembro de 2012

O outro Luís



         As paredes eram verdes. Não sei por que não amarelas ou vermelhas, ou qualquer outra cor que fosse alegre, ou desse, àqueles ali presentes, um motivo para ter esperança em qualquer coisa. Mas eram verdes, não esse verde bonito de quarto de bebê, era um verde de dor, um verde de lágrimas. Era difícil entender por que o verde. Era como se quisessem escancarar o verde dos vômitos que lavavam os corredores. Ou talvez, de tanto passear por aquele lugar, a morte tivesse escolhido a pintura das paredes. O balcão era cinza. Atrás dele, duas mulheres gordas, suadas, dessas que são casadas há muito tempo e dão para os maridos enquanto tentam lembrar se tiraram o frango do congelador para o almoço do dia seguinte. Uma delas tinha óculos sobre a ponta do nariz, e mexia em alguns papéis como se mexesse em esterco, tamanho era o repúdio que ela tinha a todas aquelas pessoas ao seu redor. Ao lado do balcão havia uma porta que levava às salas de cirurgia ou aos quartos onde os pacientes ficavam internados. 
            Havia naquela sala de espera, um par de sofás, sobre eles, pessoas angustiadas aguardando noticias. Casa cheia, hoje tinha festa no inferno e o capeta está fazendo a lista de convidados. 
          Sentada na ponta de um dos sofás havia uma velha, coberta por uns panos quentes demais para o calor que fazia. Ela carregava em suas mãos murchas e repleta de veias esverdeadas, um terço. Ela apertava cada bolinha como se quisesse a quebrar para mostrar sua fé. Sua boca mexia-se, e às vezes, algumas de suas rezas podiam ser ouvidas como sussurros. Pedia para que seu neto fosse salvo. Ela negociava o que queria, oferecendo em troca, algumas idas à missa de sexta. Ao lado da velha, um homem de terno com a camisa amarrotada para fora da calça abraçava uma mulher em desespero. Ela derramava lágrimas de uma mãe que, a qualquer momento, perderia o filho. Por mais que não gostasse muito do seu enteado, o homem do terno não queria que ele morresse. Ele não gostava, mas não era um ódio de morte. Diante de tanta coisa que era obrigado a suportar, o rapaz era o que menos exigia esforços. 
          Do outro lado da sala, outra família. Em pé, atrás do sofá, um rapaz com um copo de café na mão. Ele andava de um lado a outro impaciente. Fitava a agonia daqueles desconhecidos do outro canto da sala e se desesperava mais. Ele olhava suas irmãs e sua sobrinha no sofá, e não podia evitar o pensamento de seu cunhado morto. Sobre quem cairia a responsabilidade de cuidar delas se não a ele? Ele não estava pronto. 
           Sentada no sofá estava a mulher que podia ser viúva. Comia suas unhas como um faminto diante de um banquete, seus cabelos retorcidos davam àquele semblante mais dor. Ofereceram-lhe um chá para que se acalmasse, mas não queria nada, apenas isolar-se e pedir em suas orações a salvação de seu marido. Ela não era muito afeita a essas conversas com Deus, mas não tinha opção. Isolada dos outros, tentava afastar os maus pensamentos com conversas com o Divino, mas ela não era íntima, aquilo era muito difícil. No outro canto do sofá sua irmã, uma garota mirrada e feia. Ela não queria que seu cunhado morresse. Não entendia muito no que isso faria diferença, mas morte não é algo bom. Não pode ser. Ela ainda tinha esperanças de que um dia ele a olhasse com olhos diferentes e fizesse com ela tudo aquilo que ela ouvia vindo do quarto da irmã. Queria gemer como ela, ou até mais. Queria sentir em si aquilo que fazia volume no pijama do cunhado durante os cafés da manhã. Ela tinha sobre o colo a pequena e doce princesa da família, sua sobrinha, garota que inocentemente dormia e não sabia que em minutos poderia perder o pai. 
           O tic-tac do relógio acompanhava os sussurros de orações e os suspiros angustiados. Ouve-se então passos vindo do corredor. Um médico abre as portas com um semblante fechado. 
           -Por favor, a família do paciente Luís. - Todos olham aflitos - Fizemos o que foi possível, sinto muito. 
           Nesse momento a mãe da primeira família lançou um berro rouco de dor. Seu marido a segurava para que não caísse, ele dizia algumas palavras de consolo, mas nem eram ouvidas. A velha sentiu vontade de quebrar o terço, desperdiçou tanto tempo fazendo rezas para não ser atendida. Sentia em seu peito uma dor que a idade lhe fizera esquecer como era. 
             Do outro canto da sala, a viúva sentia sua alma cobrir-se de Luto. Ela chorava lágrimas que Capitu chorou no enterro de Escobar. Queria morrer junto com seu marido. Sua irmã não sabia o que fazer, sentia-se perdida, então se ocupava para fazer adormecer a pequena que resmungava pelos berros da sala. O cunhado ficou sem chão, e numa tentativa de tomar pra si a liderança do bando, tentava acalmar o pranto de sua irmã. Abraçou-lhe a cabeça por de trás do sofá e olhou pra frente, ele estranhou aqueles desconhecidos chorando pela morte de seu cunhado. Quem eram aqueles que sentiam tanto a ponto de lavar o rosto com lágrimas? Ele ouviu a mãe gritando "meu filho", mas aquilo não possível, ele conheceu a mãe do cunhado, ele até fora no enterro dela. Algo estava errado. 
            -Doutor - disse uma das gordas do balcão - Hoje, dois pacientes chamados Luis deram entrada aqui no hospital. Luís Martins e Luís Oliveira, o senhor pode especificar qual é o Luis que faleceu? 
             Todos cessaram seus gritos e olharam ansiosos para o doutor. Ele pediu desculpas por não saber e pediu alguns instantes para ir conferir. Ele saiu. Todos se olharam. A velha senhora Martins retomou o terço, e voltou suas orações, rezava cada mistério pedindo que o Luís morto não fosse seu neto. A cada Ave-Maria, imaginava aqueles desconhecidos chorando sobre um caixão. Pedia para o anjo Miguel lançar sua espada sobre aquele outro Luís, e que a Virgem Santíssima secasse com seu véu, o sangue do defunto, que havia de ser o outro. 
           O Homem de terno abraçou fortemente sua esposa. Cochichou em seus ouvidos que quem merecia sofrer eram os outros da sala, e que eles estavam livres dessa. Cruzou os dedos e pediu para seus Orixás que matassem o outro Luís. Não poderia ele suportar semanas de masturbação na espera que luto daquela mãe passasse. 
           Do outro lado da sala, a possível viúva criou rapidamente uma intimidade com Deus. Ela apresentava argumentos de como o outro Luis deveria ser o finado, afinal o seu marido tinha uma filha pra criar, uma família pra sustentar. O Cunhado estralou seus dedos com vivacidade, sua respiração se ofegava e ele via-se num limite entre sua vida de solteirão e uma vida de um irmão mais velho que deve cuidar das irmãs e da sobrinha. A cunhada não conhecia muitos santos ou anjos para fazer pedidos. Recorreu a quem conhecia, e pediu para São Longuinho matar o outro Luís. Ela pularia todos os dias três vezes durante um mês. Ela até prometeu que colocaria o celular para despertar para não esquecer. O cunhado não podia morrer. Não antes de uma boa trepada. 
            O médico voltou com uma folha na mão. Fez-se o silêncio. Ele olhou a todos. Ele leu o que estava escrito. Choros. Lágrimas. Desespero. A morte é sempre uma celebração da dor.

5 de setembro de 2012

Genocidio de um homem só. Um homem que não existe.


Eu quero gritar.  Berrar. Quero que todos me ouçam, quero que tudo que tenha vida saiba da minha dor, saiba quem eu sou. E quem eu sou:? Eu choro tanto por não saber. Eu choro por não poder saber. Eu quero  gritar. Quero ouvir minha voz se enrouquecer num berro desumano. Imprudente. Inconsequente. Libertador. 
Ai como dói essas amarras. Correntes farpadas e mergulhadas no vinagre barato. Sinto minha carne ser devorada pela ferrugem. A prudência me faz acostumar-se com a dor. Sentir lanças transpassando minha pele. Pele, essa maldita ponte entre o que tem em mim e o que tem no mundo.Essa jaula que não me suporta. Miúda jaula ferida. Por que meus olhos não se cansam se lavar minha face? Minhas lágrimas amargas gritam meu pranto, minha dor, meu desespero, meu medo, meu assombro. Deixe-me só e não me abandone. Queria que minha pele fosse devorada por decompositores e mostrasse ao mundo o monstro preso dentro do médico. Oh meu Deus, por que tenho que esperar estar em um tumulo para que os vermes me comam? Eu quero que comam minha carne e o jorrar do meu sangue grite minha dor.Eu quero ser o monstro nojento e asqueroso. Eu preciso ser devorado para que a deformaçao da minha face seja motivo de assombro. Eu preciso, urgentemente, assombrar os que eu amo. Meus suspiros se engasgam e me vem a boca o gosto amargo da minha respiração. Eu só quero gritar. E que não exista um pós-grito. Que o tempo se acabe e que o amanhã morra. Eu quero jorrar sangue da minha garganta em cima dos seus bons costumes, lavar seus almoços em familia como num genocídio. O Genocídio de um homem só. Quero deslizar uma lâmina na minha jugular, mas não chore. Não chore, por favor lhe imploro. Não derrame uma só lágrima por essa morte. Pegue seu champagne ou sua pinga barata, tanto faz, e festeje. Sim, festeje. Estamos em festa. Alguém morreu, quer alegria maior? Você não costuma festejar quando alguém se entrega aos vermes? Como você pode ser tão tolo? Você o acha nojento? Mas não se entristeça, não foi suicídio.Eu não quem sou. Não sei se sou um, dois ou se sou mil. Eu apenas matei. Se matei um dos mil ou matei o unico, eu não sei. Eu não sou suicida, eu sou homicida. Eu matei a mim mesmo, mas eu, eu não sou eu. Se matei um dos mil eu lhe fiz um favor, Mas matando o unico, eu deixo de existir, ou talvez, eu nunca tenha existido. Quero deixar todo esse carbono das minhas carnes adubar o solo assim como estrume de uma vaca. Oh meu Deus, por que as lágrimas não sabem se caem ou se secam? Acho que minhas lágrimas ficaram roucas. Até essas malditas lágrimas me abandonam. A fadiga me alcança. O Cansaço. O sono. Ou talvez, a Morte. Talvez seja a morte. Alguém preciso morrer. Mas eu tenho tanto medo. Eu sou tão fraco. Tão dependente. Tão incompetente que nem apodrecer eu consigo.